terça-feira, 5 de outubro de 2010

A menina que comia dedos


Joana Sena

Doze de Março de 1986, às seis e meia da manhã pesando cinco quilos e seiscentos gramas, em meio a toalhas sujas, algumas abelhas e antes de minha mãe ser depilada, nasci. De acordo com alguns relatos que me foram revelados mais tarde, no mesmo dia abri os olhos que, curiosos, procuravam reconhecer o novo lugar que agora faziam parte.
 Ainda lembro o sumo azedinho que sugava dos fartos seios que me eram ofertados como consolo toda vez que chorava. As horas corriam, enquanto eu, inquieta que sou, sossegava somente quando sentia o primeiro torpor, e assim troncha, murcha, morta de cansaço,[1]desfalecia a espera da próxima mamada.
O tempo passou e com ele a mamadura. Estado de abstinência! Sem aparente motivo de tal maldade. Inúmeras tentativas frustradas e eu também. Tudo estava fora do lugar, ou talvez eu que perdera minha casa.
Somente no Natal de 1990, a agonia fora substituída por tudo que carrego ainda hoje. Foi na manhã do dia 25 de dezembro, ela estava lá, debaixo da arvore enfeitada, como se a me esperar.
Lilica era seu nome, como era delicada. Desde o primeiro momento já pertencia-mos uma a outra. Quando a sós, trocávamos segredos e caricias que não caberia descrever neste breve momento de verdade que vos confidencio.
Tinha por volta de um metro de altura, era branca, cabelos loiros e cacheados, trajava sempre rosa e azul, junto de sua cabeça um chapeuzinho que quando puxado para frente do rosto, descobria na parte outra face, agora masculina. Uma espécie de menino-menina, ou melhor, de menina-menino, juntos dividindo o mesmo corpo.
Divertíamo-nos muito, especialmente no mês de julho quando o tempo parecia conspirar a nosso favor. Durante dias vivemos momentos gloriosos, de plena entrega e torpor. Não existiam regras, muito menos o ridículo conceito de pecado e pudor cravados em meus traumas; apenas liberdade para dançar a musica que os anjos tocavam enquanto Deus envaidecia-se de sua imagem-perfeição.
Lilica apontou-me o caminho dos tijolos dourados e agora qualquer motivo é suficiente para visitar Dorothy[2].



[1] BUARQUE, Chico; Musica Tatuagem, 1986.
[2] O Mágico de OZ. Trecho que fala do caminho dos tijolos dourados, por onde Dorothy (protagonista) passa para continuar sua jornada, e onde encontra seus companheiros de aventura.

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